8 de fevereiro de 2010

A obsessão autoritária

Eu sei, o texto é longo, mas é fundamental para entendermos a obsessão da esquerda pelo fim da liberdade de expressão (Estadão 08/02/10):

Está bem que um ex-porta-voz do governo lulista nos afiança, do alto de uma conversa confidencial com “um dos ministros mais importantes do governo Lula”, que esse negócio de “controle social da imprensa” é papo furado. Para nos tranqüilizar diz que podemos “tirar o cavalinho da chuva” porque esse negócio não vai rolar – pelo menos neste governo. (Quem duvida procure ler De onde vem tanto medo?, de Ricardo Kotscho, publicado no blog do autor e republicado no Observatório da Imprensa.)
Ufa, se estamos livres do perigo, como nos garante Kotscho, por que diabos vamos ficar insistindo nesse assunto? Há pelo menos uma razão para isso: existe um grupo de pessoas que tem uma obsessão paranoica pela palavra “controle” (e todas as suas sequelas) e sempre que podem a encaixam em qualquer projeto em que procuram edificar um futuro glorioso para nós, para nossos filhos e nossos netos – embora não lhes tenhamos concedido delegação para tanto. Vai que um dia a sociedade relaxe a vigilância e baixe a guarda, acreditando na palavra de “um dos ministros mais importantes do governo Lula”, e elas consigam, enfim, emplacar o seu sonho dourado – que é não apenas o de controlar o que chamam pejorativamente de “mídia”, mas controlar tudo o que lhes pareça controlável.
Afinal, não existe ideologia esquerdista que não inclua no sonho terminal de sua utopia instalada o controle amplo, geral e irrestrito de todas as atividades humanas. Como só eles sabem onde mora o sol, generosamente querem que todos nós usufruamos sua luz. Depois do fracasso da tentativa de emplacar um Conselho Nacional de Comunicação, usaram um projétil de nome insuspeito – Plano Nacional de Direitos Humanos-3 (PNDH-3) – para empacotar outra tentativa de controle. Controle é uma palavra que de suspeita se tornou insuportável, e até um dos ideólogos do jornalismo esquerdista, Bernardo Kucinski, professor da USP, recomendou aos companheiros que parem de usá-la.
Nem a tentativa de enobrecê-la acoplando-a ao qualificativo “social” caiu bem. Enquanto o Houaiss continuar insistindo em definir “controle” como “poder, domínio ou autoridade sobre alguém ou algo”, a parte da sociedade que preza o livre-arbítrio – tal qual o cachorro de Pavlov – vai continuar rosnando cada vez que ela for pronunciada. O amigo de Lula pergunta, em seu artigo, de onde vem tanto medo, uma vez que o presidente nunca mexeu uma palha contra a liberdade de imprensa e nunca deu sinais de ser a favor da censura. Noves fora duas ou três bravatas verbais ambíguas disparadas a esmo em algum palanque eleitoral e a tentativa de expulsão de Larry Rohter, correspondente do jornal The New York Times, o presidente, de fato, nunca tomou nenhuma iniciativa concreta para calar a imprensa. Mas é verdade também que nunca tomou nenhuma iniciativa concreta para aplicar o programa do PT em seu governo.
Ao permitir a edição desse calhamaço chamado PNDH-3, e assiná-lo embaixo, Lula parece ter feito o papel do psiquiatra que conduz seus pacientes a um desabafo catártico para aliviar lhes os pesos da consciência. Já que nada mais fizemos do que continuar aplicando o programa econômico neoliberal de nossos antecessores, vamos despejar sobre a cabeça do País 29 mil palavras do mais puro malte petista, sem blended de nenhuma espécie. Se colar, colou. Eis aí por que temos medo: puseram a caneta na mão dos inspetores de quarteirão – e, como se sabe, é deles que temos de ter medo, mais que dos chefes.
É a última chance – pelo menos neste governo – que os inspetores de quarteirão do petismo têm de pôr em prática suas ideias. Por isso no PNDH-3 estão as ideias recorrentes da vulgata petista, entre as quais as mais vistosas e típicas são estas: O desprezo à democracia representativa, substituída por umarremedo de democracia direta, que são as conferências das “organizações sociais”, por suposto, formadas pelos militantes dos partidos que apoiam o governo; a tentativa de abastardamento do Poder Judiciário, substituído pela mediação das “organizações sociais” em casos de conflitos de invasões de terras; a tentativa de criação de um ranking de empresas de mídia sob o aspecto de sua atuação em relação aos direitos humanos (com critérios ditados por quem? Claro, pelas “organizações sociais” controladas pela máquina partidária); a criação de uma “Comissão da Verdade” para julgar as violações dos direitos humanos cometidas por uma – e só uma – das partes em conflito depois do golpe militar de 1964; a nomeação de uma instância sindical para atuar nos processos de licenciamento ambiental de empresas, oferecendo mais um criador de dificuldades para vender facilidades.
Os governistas estão indignados com a reação da imprensa e de muitos setores da sociedade contra os aspectos mais “controladores” do PNDH-3, pois, afinal de contas, dizem, as conclusões foram “tiradas” (é assim que se fala ainda, como nas velhas assembleias estudantis?) em dezenas, centenas, quase milhares de conferências locais, regionais, municipais, estaduais, nacionais, etc., das quais participaram 14 mil pessoas. E essa fica sendo a conta da peculiar democracia petista: se, num país de 190 milhões de habitantes, 14 mil militantes foram mobilizados para essa prática de democracia direta, o problema da legitimidade está resolvido.
Pouco importa se os 14 mil foram tirados do mesmo embornal ideológico e que não tenham sido escolhidos por nenhum mecanismo representativo legitimado e reconhecido pelo resto da sociedade. O dedazo ideológico substitui a representatividade e quem for contra esse método é contra os direitos humanos, segundo o diktat petista. Pode ser que nada disso seja para valer (o presidente já se cansou de teorizar sobre “bravatas”, lembramse?), mas é sempre bom ficar atento. O autoritarismo costuma instalar-se disfarçado de justiceiro.

Sandro Vaia, jornalista, ex-diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, é articulista do Instituto Millenium.

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