COMO REAGIR À CRISE: POLÍTICA FISCAL
Beny Parnes
Ilan Goldfajn
A qualidade da reação brasileira à grave crise internacional irá determinar não só a extensão do impacto na economia brasileira nos próximos meses, mas também o seu futuro mais distante. Caso consiga atravessá-la mostrando consistência, com reações que não destruam as bases para o crescimento sustentado, inevitavelmente conquistará espaço no cenário internacional. Nesse caso, o Brasil faria jus à sua participação no BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), conjunto de economias emergentes que determinarão, em boa parte, o futuro da economia mundial.
Mas para isso é necessário que não se considerem apenas os efeitos imediatos das medidas de política econômica a serem adotadas no combate à crise. Em particular, a capacidade futura de crescimento não pode ser comprometida por ações cujo benefício é limitado ao curto prazo, mas que têm efeitos negativos para o crescimento de longo prazo.
Sob a ótica da reação à crise no âmbito da política fiscal, tema desta nota, é sedutor reagir à desaceleração doméstica do nível de atividade com uma política expansionista. Mas há que se considerar também preservar a capacidade de crescimento futuro do Brasil. Um país que tem elevado de forma sistemática os gastos correntes do governo -- financiados hoje com aumento da arrecadação que já atinge quase 40% do PIB (após esgotar o financiamento inflacionário e o da dívida crescente), e comprimindo o espaço dos gastos privados, oferecendo em troca à sociedade serviços ineficientes e investimentos públicos reduzidos -- tende a limitar sua própria capacidade de crescimento. Exacerbar essa tendência pode mais do que compensar os ganhos de curto prazo.
O período recente de bonança na economia mundial ofereceu oportunidades únicas para os países em desenvolvimento. Numa época de forte crescimento mundial, financiamento abundante e ganhos nos termos de troca, é natural esperar melhora nos indicadores do País. De fato, a relação do Brasil com o exterior melhorou substancialmente a partir de 2003, quando houve aumento rápido do preço das exportações brasileiras, do comércio mundial e melhoria nas condições financeiras externas. Esses fatores, combinados com a manutenção de políticas econômicas responsáveis, resultaram em aumento das exportações e dos influxos de capital, redução do endividamento externo, recomposição de reservas e manutenção do superávit em conta corrente. O combate à inflação também avançou consideravelmente nesse período. Sob o regime de metas, o Banco Central teve êxito em reduzir consistentemente a inflação, mantendo-a controlada mesmo sob impacto das crises, depreciações cambiais e outras ameaças inflacionárias.
O avanço na área fiscal foi bem mais limitado. Esperava-se mais esforço do governo, acumulando estoques a serem utilizados nos momentos de crise. Houve aumento considerável da arrecadação tributária, conseqüência do crescimento do PIB e da formalização da economia. Esse aumento de arrecadação associado à regra fiscal baseada em uma meta pré-determinada de superávit primário permitiu o contínuo aumento de gastos nos últimos anos, a uma média de 10% ao ano acima da inflação. É importante notar que, apesar da grande expansão do gasto, o investimento público como proporção do gasto total permaneceu baixo. Na América Latina, como um todo, essa relação encontra-se no menor nível dos últimos 30 anos!
A arrecadação elevou-se consideravelmente, mas o aumento do superávit primário foi limitado. Com isso, a queda da dívida pública foi menor do que deveria ter sido: a relação dívida/PIB alcançou 40%, nível equivalente ao de 1998. A dívida ainda se beneficiou da melhora na situação do balanço de pagamentos, com a acumulação de reservas e exposição positiva ao dólar. A depreciação que acompanhou a virada na situação internacional reduziu a relação dívida/PIB para 36%.
Para frente é de esperar uma retração da economia brasileira em função da reversão simultânea dos preços de exportação, da piora das condições de financiamento externo e do aumento da percepção de risco soberano. O ajuste no cenário externo vai exigir redução na demanda agregada.
Nesse cenário é provável ocorrer uma queda da arrecadação tributária. No último ciclo de expansão, o crescimento da arrecadação foi muito dependente de fatores específicos, como o crescimento do crédito, dos lucros financeiros, da expansão do consumo (principalmente de bens duráveis) e do emprego. À medida que, no quadro que se avizinha, esses fatores não mais estejam presentes, o crescimento da arrecadação tributária deve se reduzir no biênio 2009-2010. Isso trará desafios inéditos para a administração da política fiscal e imporá limites à expansão de gastos.
Nesse sentido, podemos concluir que a política fiscal tem tido um comportamento pró-cíclico. Faz poucos anos, no primeiro mandato do governo Lula, houve a louvável proposta de instituir metas de longo prazo, limitando gastos correntes, gerando um superávit fiscal estrutural de forma a reduzir o endividamento público e remover o obstáculo fiscal ao crescimento da economia. Infelizmente, a proposta não avançou, batizada de “rudimentar” por olhar o futuro de forma simples e clara.35
Cabe perguntar se este seria o momento de iniciar uma política fiscal anticíclica em reação à crise internacional de 2007/8. Normalmente, recomenda-se iniciar uma política anticíclica nos momentos de expansão econômica, para ajudar a criar credibilidade. Há sempre a desconfiança baseada no histórico brasileiro e latino-americano de o excesso de gastos no período de necessidade não ser acompanhado por sua redução nos períodos de bonança. O comportamento recente das economias justifica esse temor. Assim sendo, há o risco de o aumento de gastos anticíclicos gerar temores quanto à sustentabilidade fiscal.
Dessa forma, o limite imposto pela situação fiscal ao crescimento de longo prazo, assim como o risco de renascerem dúvidas quanto à sustentabilidade fiscal, não ecomendariam uma política fiscal expansionista como reação à crise financeira internacional.
Apesar da recente melhoria da relação dívida/PIB, decorrente da posição credora em moeda estrangeira, a grande incerteza e a volatilidade que permanecem nos mercados de ativos trazem o risco de que mudanças na percepção dos agentes sobre a condução da política fiscal possam provocar deslocamentos bruscos nos preços dos ativos e nas condições de financiamento.
É relevante questionar em que condições os benefícios de curto prazo de uma política fiscal expansionista no combate à desaceleração no Brasil mais do que compensariam as contra-indicações acima? E, neste caso, qual é a forma adequada de gerir a política fiscal?
O ajuste na política fiscal deve depender da natureza e da intensidade dos choques que atingirão a economia brasileira. Num cenário de choque internacional moderado (onde os preços dos ativos e das commodities não sofram quedas ainda mais bruscas, mesmo que permaneçam em níveis bem inferiores àqueles verificados no início do ano), a economia brasileira deverá se ajustar à nova realidade, preservando seu balanço de pagamentos através da redução da demanda agregada. Nesse cenário, não é benéfico adotar uma política fiscal anticíclica (principalmente se for baseada na expansão do gasto corrente), sob o risco de suscitar dúvidas sobre o crescimento futuro ou sustentabilidade fiscal.
Nesse cenário moderado, caso a menor demanda agregada aumentasse o hiato do produto de forma que a inflação ficasse abaixo do centro da meta, o ajuste fino de demanda poderia ser levado a cabo pela política monetária.
Nesse sentido, caso haja um aumento de gastos públicos, poderia não haver espaço para a utilização da política monetária como instrumento anticíclico, o que significaria exacerbar a pressão sobre os gastos privados (investimento, consumo) num período em que estes naturalmente já se retraem.
Apenas num cenário extremo de depressão mundial, onde o ajuste via política monetária não fosse suficiente, recomendaríamos a redução do superávit primário como instrumento contracíclico de política econômica. Esse cenário seria caracterizado domesticamente por aumento da aversão a risco e piora das expectativas de renda, implicando queda significativa dos componentes da demanda agregada, como investimento e consumo privado e exportações, e/ou contração da oferta de crédito doméstico e dificuldade sistemática de financiamento para empresas e consumidores.
Nesse caso, é consenso que se deve tentar amortecer os efeitos do choque sobre o investimento - seja público ou privado -, que provavelmente deve se reduzir dadas as piores expectativas de rentabilidade futura. O ajuste deveria recair no consumo privado e/ou no gasto público. O consumo privado se ajustará naturalmente, seguindo expectativas de evolução de emprego e renda e da taxa de juros.
Nesse cenário mais pessimista, a execução da política fiscal deveria ser baseada na redução da meta de superávit primário para: (i) expansão do investimento público em infra-estrutura de forma a aumentar a oferta agregada e a produtividade total dos fatores; e/ou (ii) redução nos impostos do setor corporativo, melhorando as expectativas de rentabilidade, incentivando a manutenção do emprego, o crescimento do investimento privado e reduzindo a demanda por crédito.