18 de maio de 2010

Quando a ideologia cala o debate

Matéria antiga, publicada pela revista Época, porém, muito utilizada pelos membros do Governo Lula até hoje.

IBGE também não deve fugir dessa "mão ideológica", o que é triste para institutos responsáveis por divulgações de dados tão importantes para o País.


Revista Época, ano 2008

Quando a ideologia cala o debate

Como os novos dirigentes do Ipea estão transformando um dos principais institutos de pesquisa do país num centro de intolerância

Uma reunião do grupo de conjuntura na sede do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Rio de Janeiro, há duas semanas, discutia a alta recente da inflação. A certa altura, o coordenador Miguel Bruno defendia teses que foram contrariadas pelos colegas, com base em argumentos técnicos. Bruno, segundo o relato de testemunhas, teria trocado, então, o debate econômico pelo ideológico. Teria dado um murro na mesa e bradado, em tom de voz alterado:

– Quero saber quem é neoliberal aqui!

Bruno nega ter dito a frase. Também nega que a cena descrita pelas testemunhas tenha se passado assim. Mas têm se tornado cada vez mais freqüentes os relatos de comportamentos intolerantes com opiniões divergentes nas salas e nos corredores do Ipea, um dos mais importantes e tradicionais centros de pesquisa e pensamento econômico do país. Esses relatos começaram no ano passado, quando o Ipea passou a ser dirigido pela dupla de economistas Márcio Pochmann – da Universidade de Campinas, ligado ao PT – e João Sicsú – da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), assessor do senador Marcelo Crivella (PRB). Pochmann é o presidente do Ipea e Sicsú o diretor de Macroeconomia.

O Ipea foi fundado em 1964 pelo economista João Paulo dos Reis Velloso, a pedido do então ministro do Planejamento, Roberto Campos. O objetivo era criar um centro de pesquisa acadêmica capaz de elaborar políticas públicas para o futuro. Ele sempre foi vinculado ao Ministério do Planejamento e, tradicionalmente, teve atuação independente das políticas do governo. Isso começou a mudar quando o instituto passou a responder ao Núcleo de Assuntos Estratégicos, do ministro Roberto Mangabeira Unger, e a diretoria foi trocada.

Pochmann e Sicsú inauguraram sua gestão com o afastamento de quatro pesquisadores de reconhecida capacidade – Fábio Giambiagi, Otávio Tourinho, Gervásio Rezende e Régis Bonelli –, alegando “motivos burocráticos”. Além deles, outros cinco pesquisadores tomaram o caminho da rua de lá para cá. Armando Castelar, co-autor de um livro sobre o crescimento econômico com Giambiagi, trocou o Ipea pela Gávea Investimentos, administradora de recursos do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Paulo Tafner e Ronaldo Seroa da Motta foram para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Estevão Kopschitz trocou a pesquisa por cargo executivo numa empresa do bilionário da energia Eike Batista. Mérida Medina, uma das maiores especialistas do país no cálculo do Produto Interno Bruto, deixou o Ipea após 12 anos para trabalhar no Instituto Pereira Passos, no Rio, especializado em estudos urbanísticos. “Quando as coisas começaram a acontecer, preferi sair”, diz Mérida. Cláudio Ferraz, especialista em regulação, deixa o instituto no fim do mês para se tornar professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). “Há fuga e expulsão de cérebros”, diz o economista Edmar Bacha, do banco Itaú BBA, ex-pesquisador do Ipea e um dos formuladores do Plano Real.

Há duas semanas, Sicsú e o coordenador Miguel Bruno anunciaram que o Ipea não divulgaria mais previsões trimestrais sobre inflação e outros índices econômicos. Afirmaram que elas serviam antes para alimentar as especulações do mercado finaneiro. Foi uma medida que, de acordo com os críticos, teve uma motivação política. O país vive um momento de forte pressão inflacionária, e não divulgar os índices favorece o interesse do governo. Para a diretoria do Ipea, a iniciativa está ancorada nos preceitos iniciais do instituto: planejar o Brasil do futuro e não se ocupar de análises mais imediatas. “A missão do Ipea é elaborar um projeto para o país, concentrando suas energias em pesquisas de cunho estratégico”, afirma Sicsú. “O Ipea não foi criado para tratar de conjuntura e fazer previsões”, diz seu fundador, Reis Velloso.

A questão ideológica está no centro da disputa em curso no Ipea. Pochmann e Sicsú pertencem a uma escola de pensamento conhecida entre os economistas como heterodoxa. Defendem o aumento dos gastos públicos e a maior presença do Estado na economia. Eles se opõem aos economistas da linha chamada ortodoxa, que defende a menor intervenção estatal e o controle de gastos públicos. No meio acadêmico, é freqüente a disputa entre economistas das duas linhas. “A economia não é uma ciência exata”, afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp. “Essas disputas ideológicas sempre vão existir. O que não pode é desqualificar o outro.”

A intransigência ideológica com o debate acaba prejudicando o próprio Ipea. Além daqueles pesquisadores que saíram, há talentos “encostados” por não pertencer à turma heterodoxa. O caso mais notório é o do economista Ricardo Paes de Barros, conhecido como PB. Autor de estudos clássicos sobre desigualdade e miséria, PB é tido como um dos maiores especialistas do mundo em sua área. “É um economista brilhante”, afirma Bacha. PB voltou há pouco de uma temporada na Universidade de Chicago, a maior usina mundial de prêmios Nobel de economia. Perdeu o cargo de coordenador de sua área e não é chamado a participar das decisões. “Puseram o PB na geladeira”, diz um colega. Prova disso é a ausência de seu nome nos planos para criar um curso de pós-graduação no Ipea que contemplaria o desenvolvimento e a área social, especialidades de PB. “A intenção é aproveitarmos a excelência da instituição e seus técnicos para criar um centro de difusão de idéias e de debates sobre a questão do desenvolvimento em seus diferentes aspectos”, disse Pochmann em resposta por escrito, enviada por sua assessoria. PB não fala no assunto.

Outro foco de atrito é a revista Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE) , considerada uma das três mais importantes publicações acadêmicas em economia do país. Publicar um artigo nela conta pontos para os pesquisadores obterem financiamentos para pesquisas. Algumas universidades pagam prêmios de R$ 15 mil a quem consegue passar pelo rigoroso crivo da PPE. No fim do ano passado, a nova direção do Ipea afastou Otávio Tourinho, editor da PPE havia dez anos. Dois dias antes de sua saída, Tourinho recebeu uma ligação de Renault Michel, adjunto de Sicsú, para falar do futuro da revista. “É para você transferir a edição da PPE a alguém que vamos indicar”, disse Michel. Tourinho fugiu da conversa. Mais tarde, encontrou Michel e Sicsú e disse que não deixaria que “bagunçassem” a revista. “A revista não será bagunçada, porque a gente quer colocar o Sicsú como editor”, teria dito Michel. “Nunca me reuni com o antigo editor da PPE. Nunca pensei em ser editor da PPE”, disse Sicsú em resposta por escrito.

‘‘O embate de idéias não pode se transformar em embate do poder ’’
EDMAR BACHA, economista, um dos pais do Plano Real e ex-pesquisador do Ipea


Tourinho teria dito a Michel que o regimento interno da revista estabelece que o editor tem de ser do corpo editorial e escolhido pelo diretor do Ipea a partir de uma lista tríplice. A revista está sem editor desde a saída de Tourinho. A lista foi enviada a Sicsú em dezembro. Até agora ele não decidiu. “O novo editor não será indicado por mim, mas sim pela diretoria colegiada do Ipea”, afirma Sicsú.

O grupo de conjuntura, antes coordenado por Giambiagi, foi o mais atingido pela nova gestão. Seus seminários semanais, antes concorridos e freqüentados pelos diretores, foram esvaziados. “A atual direção do Ipea age como se a instituição fosse propriedade privada dela”, diz Giambiagi, agora diretor do BNDES. “Querem transformar o Ipea em um bunker de defesa do governo.”

O conflito de idéias, mesmo virulento, é saudável e fundamental em instituições como o Ipea, que vivem de estudos e debates. “O que não pode é transformar um embate de idéias em um embate de poder”, diz Bacha. “Não se pode ficar com posição ideologicamente motivada e cercear o livre debate de idéias.” Isso não combina com a história do Ipea. Na década de 1970, em pleno regime militar, o Ipea foi o responsável por levantar a discussão sobre o problema da distribuição desigual de renda no Brasil. O tema incomodava os militares, mas eles não incomodaram os pesquisadores por seu trabalho. A independência do Ipea não poupou de críticas nem mesmo seu fundador, Reis Velloso. Quando já estava fora do instituto e de volta ao governo como ministro do Planejamento do presidente Ernesto Geisel (1974-1979), ele era responsável por tocar o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). “O primeiro artigo atacando o PND, implantado por mim, foi publicado pelo Ipea”, afirma Reis Velloso. Os autores foram Régis Bonelli e Pedro Malan, ex-ministro de FHC e, na época, um técnico ligado ao MDB (hoje PMDB), de oposição aos militares.

Ficar dócil ao governo pode ser a morte para um centro produtor de idéias e pensamento. “Quando há um cientista a favor de um governo, não há mais um cientista”, afirma o filósofo Roberto Romano, professor da Unicamp. Bacha conta uma história interessante para ilustrar a impetuosidade e a democracia reinantes no Ipea em seu tempo. Em 1972, a direção discordava de uma tese sua. As discussões se alongaram por meses, até que se decidiu pela publicação do trabalho num livro com artigos de diretores discutindo a tese. Essa história sugere ter havido mais tolerância com as idéias divergentes dentro do Ipea na ditadura do que existe hoje, em plena democracia.

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI7378-15223,00-QUANDO+A+IDEOLOGIA+CALA+O+DEBATE.html

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