12 de março de 2010

O Fiscal do Fiscal e o Combate à Corrupção

Por:João Rogério Sanson*

Freqüentes denúncias de corrupção, de todo tipo, têm convulsionado o Brasil pelo menos desde os anos 1990. São políticos acusados de locupletação com recursos públicos, juízes que se envolvem com quadrilhas especializadas em desvio de dinheiro público ou em outras atividades ilegais, policiais ligados ao tráfico de drogas e empresários e outros interesses privados que corrompem a máquina pública. Se os criadores e os guardiões da lei aparecem como corruptos, a pergunta que fazemos é: o quê fazer para que isso não ocorra, ou, pelo menos, para que seja diminuído a níveis comparáveis com países conhecidos como de baixa corrupção?
A solução mais óbvia é criar esquemas de auditoria. Mas aí surge o problema do fiscal do fiscal. Assim, o policial fiscaliza o cidadão, o corregedor fiscaliza o policial, o juiz fiscaliza o corregedor, e aquele é fiscalizado por alguém, e o processo terá que parar em alguém mais acima. Isso lembra a história de um nativo que tinha uma visão cosmológica conflitante com a moderna astronomia. Segundo a visão nativa, a terra é um grande disco apoiado sobre um grande elefante. Quando perguntado sobre qual a base de apoio do elefante, ele diz que é uma grande tartaruga, que por sua vez está apoiada sobre muitas outras tartarugas, num amontoado sem fim. Para o nativo, é inconcebível que a terra esteja vagando pelo espaço, sem nenhum apoio físico. Uma imagem mais antiga é a do deus grego Atlas, às vezes desenhado com o planeta Terra nas costas, embora ele, na verdade, tivesse que segurar os céus. Essa concepção divina presumia a terra como centro do universo, servindo então de base para Atlas.
Na questão do fiscal do fiscal, seguindo a hipótese das tartarugas, seria preciso encontrar um fiscal de última instância. Uma das opções antigas era o grande líder político com poderes absolutos. Outra opção era tornar essa solução mais permanente, e atribuir essa função a deuses, que em muitos casos tinham também um líder. Nas sociedades mais recentes, esse papel é em geral atribuído ao Poder Judiciário. Esse poder tem a função de verificar o cumprimento das leis, incluindo uma lei maior, a Constituição. Mas há ampla evidência histórica de que, em ambientes autoritários, mesmo a Constituição não está a salvo de mudanças convenientes para o grupo que controla a sociedade naquele momento, podendo levar a sociedade a um ambiente de alta corrupção. Portanto, o Poder Judiciário e a Constituição, num horizonte temporal mais longo, não preenchem a função de fiscal do fiscal.
Antes de seguirmos para formas mais específicas de controle das decisões da sociedade, precisamos definir mais claramente o que entendemos pelo termo corrupção, embora isso seja como o caso de um pato, que não é muito fácil de descrever, mas sobre o qual todos temos uma idéia razoável do que seja. Uma definição possível é dizer que a corrupção ocorre quando indivíduos, agindo isoladamente ou em grupos, obtêm benefícios privados às custas de recursos públicos por meios proibidos pela lei. Mas pode ser também entendida apenas como formas de benefícios privados inaceitáveis pelas crenças compartilhadas por uma dada sociedade, muitas vezes ainda não capitulados na legislação.
Como conseqüência de tais atos, ocorre redistribuição de renda, muitas vezes para minorias já bem postas em posses. Instala-se, além disso, um ambiente inadequado para a divisão social de trabalho, levando a atrasos no desenvolvimento econômico. Decisões de investimento são atrasadas, com queda de rentabilidade, devido à exigência de pagamento de propinas em dinheiro ou em benefícios materiais. De outra parte, corruptos muitas vezes criam dificuldades para vender facilidades. E devemos notar que isso independe de se tratar de uma economia de mercado ou de uma economia centralizada, como as da era do socialismo real. Por conta disso, até já se constatou que a corrupção, uma vez criadas essas dificuldades geradoras de propinas, é uma forma de agilizar processos e, assim, obter mais agilidade nas decisões, contribuindo para o desenvolvimento econômico.
Naturalmente, as grandes organizações privadas não estão imunes a essas questões. Contudo, a diferença é que, em ambientes de concorrência, essas organizações têm sua sobrevivência comprometida no longo prazo por conta de seus maiores custos e da maior lentidão em suas respostas à mudança de circunstâncias. O setor público, por natureza, tende ao poder de monopólio nos serviços que fornece à sociedade, o que, na ausência de mecanismos sociais alternativos, dá uma sobrevida a tais problemas.
Soluções práticas para combater a corrupção e outros problemas de natureza política têm sido adotadas ao longo da história humana. Uma dessas soluções é justamente a divisão de poderes do governo, com uma divisão de trabalho entre atividades executivas, legislativas e judiciárias. Assim, os poderes são relativamente independentes. Mas o Executivo presta contas formalmente ao legislativo, cabendo aos Tribunais de Conta o papel de verificar se a legislação vigente foi cumprida na execução dos orçamentos. O Judiciário aplica a lei, e isso funciona como fiscalização,
inclusive de si próprio. O topo do Judiciário é escolhido pelo Executivo. Mas os membros do Executivo e do Legislativo são escolhidos, e assim fiscalizáveis, pelos eleitores.
Por conta de origens históricas, quando as unidades políticas eram anteriormente independentes, temos organizações federativas, em vários níveis. No caso brasileiro, na verdade, o regime federativo, com três níveis, decorreu de uma redução dos poderes centrais, com aumento de autonomia dos governos provinciais e municipais. Foi construído como solução política para evitar o fracionamento do país, tendo em vista as várias revoltas regionais. Em regimes federativos, a divisão de poderes e a eleição de membros do executivo e do legislativo é a regra. Em alguns países, membros do judiciário local são também eleitos.
É essa prerrogativa dos eleitores que representa a função fiscalizadora dasvárias partes que compõem a máquina governamental, em seus poderes e níveis. A força dessa fiscalização, no entanto, parece bastante fraca, uma vez que só periodicamente o eleitor diz sim ou não a cada candidatura. Mesmo assim, nas propostas dos candidatos estão embutidas tanto as despesas prometidas como a tributação correspondente, embora nem sempre de forma explícita, junto com propostas de mudanças institucionais.
Num ambiente de alta concorrência política e com informação perfeita, o próprio processo político leva a que as preferências da maioria dos eleitores sejam atendidas. A própria presença de muitos partidos políticos e a descentralização do governo em níveis locais pode, em princípio, garantir o atendimento das preferências de minorias. Esse raciocínio de Joseph Schumpeter, elaborado em meados do século XX, é uma generalização do argumento de Adam Smith, de quase duzentos anos antes, quanto ao papel da concorrência entre empresas no atendimento às demandas de bens privados. Segundo Smith, não apenas os capitalistas atendem as preferências dos consumidores, como a concorrência conduz ao lucro puro nulo, que às vezes descrevemos, em linguagem alternativa, como um lucro normal ou justo.
Na política, a concorrência entre os profissionais da política também leva ao atendimento das preferências dos eleitores junto com a diminuição de ganhos excessivos que o exercício do poder proporcionaria. A diminuição da corrupção vem junto. A concorrência política é a característica que pode tornar o exercício do voto o fiscal dos fiscais. Por conta dessa concorrência, os políticos de oposição são induzidos a expor os problemas aos eleitores e ao Judiciário. Este define as penas nos casos em que há evidência judiciária, e o eleitorado diz não a tais políticos. O fiscal dos fiscais é, em última instância, o eleitor, embora o sistema político dê a impressãode ficar suspenso no ar, vagando de eleição a eleição, sem ninguém que o controle. Embora um voto isolado tenha uma influência insignificante, a soma de todos os votos tem uma força descomunal.
Mas a informação é imperfeita, e muitos políticos conseguem enviesar a distribuição de poder em seu favor. Adivinhe qual é uma das justificativas para enfeixar mais poder? O perigo de deixar o sistema político funcionar livremente. Um dos argumentos preferidos dos militares no golpe de Estado de 1964 era justamente o alegado excesso de corrupção existente na área pública, sem contar as ameaças externas no contexto da Guerra Fria e as contas de décadas anteriores a acertar entre os militares e os civis. A imagem propagada era que a corporação militar, então com uma imagem de incorruptível, junto à população, seria o fiscal dos fiscais.
O problema da informação imperfeita torna as decisões dos eleitores mais difíceis, pois os custos de obtenção de informação tomam tempo e renda. Os eleitores optam pelo uso de indicadores indiretos para saber o que pretendem os políticos, que se organizam em partidos e agem como empresas que vendem serviços de representação dos interesses dos eleitores nas decisões nacionais públicas. Associam, a seus partidos ou a seus líderes, imagens parecidas com as marcas usadas pelas empresas em seus produtos. Um termo usado por Antonio Gramsci, em sentido mais amplo (SIMIONATTO, 1995, cap.1), é ideologia, que Anthony Downs restringiu à competição partidária. É o que dá uma cara ao partido, diminuindo custos de informação ao eleitor.
Alguns países, com democracia consolidada, têm dado status especial à imprensa falada e escrita justamente por ser um instrumento automático de diminuição de custos de informação. É uma atividade comercial como qualquer outra e se encaixa nos argumentos smithianos quanto à concorrência. Assim como o feijão e o arroz para os brasileiros, a informação da imprensa é também uma mercadoria essencial. O ideal para os políticos é sempre ter uma imprensa a favor. A concentração nesse mercado pode converter-se em concentração do poder de influência política na medida em que certas informações sejam restringidas.
O problema do poder de mercado político é também uma limitação ao funcionamento do processo, embora em certas circunstâncias, como, por exemplo numa guerra, uma sociedade democrática possa dar poderes adicionais a seus líderes. Um caso interessante, mas já antigo, é o de Winston Churchill, que embora tivesse cometido sérios erros em decisões políticas nos anos anteriores à Grande Depressão, mostrou-se o político adequado para comandar os ingleses na luta de vida e morte contra o nazismo. Mas assim que a guerra terminou, os eleitores o mandaram para casa, pois as instituições políticas o permitiam. Ao mesmo tempo, Getúlio Vargas, que era um governante autoritário durante a mesma guerra, foi para casa como conseqüência de um golpe de Estado.
Assim como nos mercados, os governos autoritários também respondem aos interesses dos cidadãos, mesmo que consigam controlar as eleições. Apesar de a imprensa ser sufocada ou colocada a serviço do regime, muita informação ainda passa por outros meios. É aqui que aparece outro elemento importante do processo político com pouca ou nenhuma concorrência política e informação imperfeita: os grupos de interesse. A concorrência também ocorre entre tais grupos, dos quais os empresários são apenas um subconjunto. São eles que podem obter vantagens decorrentes do poder político concentrado, mas, ao mesmo tempo, concorrem entre si, como argumentou Arthur Bentley no início do século XX. Embora o tempo de ajustamento seja muito mais lento do que numa democracia, e os ajustamentos se mostrem sujeitos a períodos de alta instabilidade, ao final ele ocorre. É como se a Terra tivesse uma trajetória um pouco errática no espaço, mas tendendo à estabilidade, o que possivelmente deve ter ocorrido quando de sua formação. O sistema político continua a funcionar sem precisar de um fiscal dos fiscais. Os políticos de governos autoritários que pretendem fazer isso têm vida relativamente curta, e poucos conseguem manter esse papel durante toda sua vida, o que nem sempre ocorre por seus próprios méritos.
Do ponto de vista da corrupção, um elemento adicional é a cultura ética da sociedade, muitas vezes embutida em princípios religiosos. Aliás, em sociedades antigas, a divisão de trabalho entre religião e política era mínima, assim como havia pouca competição entre as religiões. Princípios éticos embutidos nas instituições e compartilhados por todos ajudam a diminuir a corrupção, mas precisamos investigar como a sociedade internaliza tais princípios.
Em geral, há uma longa evolução das instituições, com sistemas de incentivos para adoção de tais princípios. Podemos, por fim, voltar ao caso brasileiro. A evidência crescente de problemas de corrupção e de descontrole institucional em alguns setores, segundo a visão aqui apresentada, é, na verdade, uma evidência de que o processo político democrático está funcionando e de que os cidadãos brasileiros mostram crescente intolerância com tais atividades. A concorrência política é o fiscal dos fiscais e é ela que está em funcionamento. Não precisamos de elefantes e nem de grandes tartarugas para tal função.

Referências Bibliográficas
BENTLEY, A. F. The Process of Government: A Study of Social Pressures. Chicago: The University of Chicago Press, 1908. Livro baixado de: www.archive.org.
DOWNS, A. Uma Teoria Econômica da Democracia. São Paulo: Ed. USP, 1999. Original em inglês, 1957.
SCHUMPETER, J. A. Capitalism, Socialism and Democracy. 3.ª ed. New York: Harper & Row, 1950. Primeira edição, 1942.
SIMIONATTO, I. Gramsci: Sua Teoria, Incidência no Brasil, Influência no Serviço Social. Florianópolis: Ed. da UFSC; São Paulo: Cortez, 1995.
SMITH, A. Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. 2.ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores.) Original em inglês, 1776.

* Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFSC. Este artigo foi escrito com base em anotações para a palestra intitulada “O fiscal dos fiscais: a concorrência política”, durante a XXXI Semana do Economista, numa promoção conjunta do Conselho Regional de Economia do Estado do Mato Grosso (CORECON-MT) e da Universidade Federal do Mato Grosso, realizada em Cuiabá em 2005. O autor agradece os comentários recebidos na ocasião.

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