19 de novembro de 2010

A sorte e o azar dos irlandeses

Um tema econômico que me tornei especialista in loco é a crise irlandesa, pois morei em Dublin durante o boom espetacular que eles tiveram e retornei ao Brasil quando começou a crise, sabendo que ia levar algum tempo até toda a sujeira começar a sair de baixo do tapete, mas que daquele ponto em diante seria ladeira abaixo.

Em primeiro lugar, tenta-se esquivar da responsabilidade individual os milhões de irlandeses e também muitos estrangeiros que entraram de cabeça na bolha imobiliária irlandesa como se fosse uma aposta certa. A corrupção de um sistema econômico não é algo que esteja apenas delimitado entre grandes banqueiros e grandes redes de interesse. Praticamente todo mundo sem muita experiência e conhecimento financeiro participou da bolha imobiliária. Era impossível falar meia hora com um Irlandês sem que o tópico imobiliário aparecesse na conversa.

Muitos com um pouco mais de noção imaginavam os riscos. Mas como estes riscos levariam o país inteiro abaixo, acreditavam que havia uma garantia implícita do sistema. Ou seja, o mesmo tipo de moral hazard que afeta o comportamento econômico dos bancos também afeta a população inteira.

Bem poucos entendiam os mecanismos do Euro, ou o que realmente significa fazer parte da zona do Euro, para além das experiências mais quotidianas do uso desta moeda. Uma garantia do sistema bancário e da bolha imobiliária irlandesa não poderia vir do próprio tesouro irlandês.

Eles bem que tentaram cumprir o plano, e resgatar os bancos com fortes conexões políticas com verbas públicas. Mas a Irlanda é um país bastante pequeno, com um orçamento público bastante limitado. O professor Morgan Kelly do UCD resumiu bem: 'cada centavo de imposto dos próximos 2 ou 3 anos iria para cobrir a quebra do Anglo Irish Bank ( o mais 'financeiramente ousado' dos bancos irlandeses ). Cada centavo dos próximos 2 anos para cobrir o AIB. E cada centavo do ano em seguida para todos os outros.'.

Então agora que a situação mostra sua incorntonabilidade, a União Européia ( leia-se Alemanha ) vem oferecer ajuda financeira, e convencer o governo Irlandês a aceitar o pacote, coisa que traz também uma crise política e tem profundas consequências de longo-prazo na soberania irlandesa, pois pode significar a morte da Irlanda como paraíso fiscal e como uma plataforma eficiente para o estabelecimento de empresas globais no velho continente.

Entender o 'sistema' irlandês não é coisa fácil para um político alemão, francês ou mesmo um brasileiro. Acostumados a viver em grandes economias, com um grande mercado interno e sob a sombra onipotente de um governo devorador de recursos, eles acreditam que a carga tributária pode ser arbitrariamente alta sem quase nenhum efeito negativo na geração de renda e empregos. Porque eles acreditam - parcialmente com razão - que as empresas globais irão pagar qualquer coisa para entrar nestes mercados.

Mas imagine-se na posição de uma autoridade de praticamente uma cidade-estado, como Dubai ou Cingapura, ou de um pequeno e empobrecido país como a Irlanda. Para uma economia desse porte não há coação econômica possível, e nem arranjo sindical de poder econômico interno que ofereça ganhos comparáveis aos do mercado internacional. E vejam que eles já sabem isso por experiência própria. Já passaram por uma fase de impostos altíssimos, alto nível de atividade sindical e de estatização da economia. Obviamente que não funciona, nem para um país grande e muito menos para uma economia pequena.

Então a economia se desenvolveu em direção a um modelo bastante eficiente e enxuto, com baixa carga de impostos, muitos atrativos para que empresas globais estrangeiras se estabeleçam no país. Não é à toa que as zonas de Duty Free nos aeroportos foram inventadas na Irlanda. Nos anos 80 se estabeleceu um grande centro financeiro que praticamente fechava a contabilidade global de muitas empresas. E nos anos 90 e 2000 se consolidou a política de apoio ao investimento estrangeiro, com uma carga de impostos entre as mais baixas do mundo e certamente a mais baixa da Europa.

Como resultado temos a massiva entrada de investimentos estrangeiros e a criação de muitos empregos com alto valor agregado. Temos ampla oferta de emprego para a população nativa de todos os níveis. Destaca-se o grande investimento feito na Irlanda na área educacional. Mas, apesar disso, é natural que existam muitas vagas técnicas que não podem ser supridas internamente no tempo desejado. Aí começa a se delinear a política do país em relação à imigração.

A imigração em um país antigo é sempre um assunto complicado. A Irlanda experimentou historicamente emigração em massa, e recentemente imigração em massa, com grande entrada de especialistas de fora da EU, e grande entrada de trabalhadores internos da EU em todos os nível e praticamente de todos os países. Especialmente indicativo foi o ingresso dos jovens recém-formados de países do centro, assim ditos prósperos e ricos, como França, Itália e Alemanha, porém sem oportunidades de trabalho para quem, por ser jovem ou por não ter alto nível de formação, não está bem dentro do sistema caro que eles criaram.

Aí pensamos por um minuto: o que os irlandeses, e, principalmente, os grupos políticos e econômicos locais ganham com este processo?

Basta imaginar: entrada em massa de empresas estrangeiras, entrada de investimento estrangeiro. Vão precisar de escritórios, edifícios, transporte, serviços. Esta parte era majoritariamente executada por empresários irlandeses. O maior indicador do nível de integração de uma pessoa à sua cidade ou país é o quanto de propriedade, terras e imóveis, esta pessoa tem. Os impostos para empresas são baixos. Há um monte de imigrantes. A terra é controlada pelos interesses políticos nativos, e se valoriza naturalmente. E assim todos os locais se beneficiam, com a inflação de preços dos aluguéis e dos serviços para estes profissionais das empresas de alto-valor agregado.

Eles criaram um complicado sistema de licenças de construção, que eram reguladas e exploradas por empresários e indivíduos com conhecimento e trânsito por esta burocracia complicada. Para construir na Irlanda você praticamente tem que entrar em uma sociedade secreta. Acredite ou não, em algumas áreas do país apenas nativos podiam construir!

Logo é natural que o setor governamental, bancário, de construção, serviços e arquitetura fizesse a festa.

E o melhor ainda estava por vir. Com a entrada em massa de imigrantes especializados para ocupar estes postos de trabalho de alto valor, se criou um mercado enorme de aluguel para profissionais, sejam irlandeses de outras cidades ou estrangeiros. Qualquer irlandês com uma casa subitamente tinha uma fonte de renda. Muitos se tornaram 'landlords', ou proprietários de imóveis para alugar, algo que na cultura de influência britânica deles é um baita símbolo de status.

Isto tudo somado, evidentemente, às falhas do sistema monetário já bastante comentadas neste blog, criaram uma dinâmica que levou a uma das maiores bolhas imobiliárias da história.

No auge da coisa, pessoas compravam casas em lugares que elas não queriam porque tinham medo de nunca mais poder alcançar os preços dos imóveis. Eu vi isso com muita tristeza, porque afetava amigos e pessoas próximas. Tomavam crédito a pagar em 35-40 anos, com taxas promocionais de curta duração. Era evidente que haveria um problema. E se multiplicavam os programas na televisão contando as estórias de especuladores imobiliários de sucesso. E os irlandeses que ganharam dinheiro saiam Europa afora dobrando a aposta e comprando propriedade em outros países.

O maior indicador de que você está vivendo em uma bolha é quando você começa a evitar certos assuntos. E um assunto que daria o status de pária em qualquer roda de conversa em Dublin era o eventual colapso da bolha imobiliária irlandesa - que quebraria em sequência os bancos, as empresas de construção, e o tesouro público. O setor de serviços, como bares, restaurantes, seria fortemente afetado. Isto levaria a uma emigração dos estrangeiros não-especializados, o que enfraqueceria ainda mais a demanda por casas e imóveis. A sequência lógica destes acontecimentos era impressionante. E não é que a lógica, como sempre, estava correta?

Mas o pior ainda está por vir. Ao aceitar o pacote de ajuda europeu, a Irlanda vai praticamente renunciar à soberania fiscal. Aí o país deixa de ser um centro de atração para o capital estrangeiro, para empresas de ponta, que podem escolher outros países da Europa com carga tributária igualmente elevada. E o país voltaria a ser o que sempre foi, uma ilha da periferia da Europa.

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